Quando os Talibãs usavam os estádios para as execuções públicas

Por Francesco Moria para MondoSportivo

Nas horas dramáticas em que a tomada de Cabul pelos Talibãs e a consequente restauração de um regime já tristemente conhecido do Afeganistão, o Emirado Islâmico, de repente retorna aos olhos uma imagem que ficou escondida por anos na mente, apenas aparentemente esquecida e em vez disso agora tão viva novamente. É a memória de um doloroso filme de poucos minutos de 1999, encontrado há poucos anos quase por acaso e testemunho tão cru e agora tristemente atual das atrocidades do governo do talibã que ficou no comando entre 1996 e 2001. A cena acontece no estádio olímpico de Cabul, com 30 mil pessoas nas arquibancadas, mas o evento central não é uma partida de futebol: é a primeira execução pública, pelo novo regime, de uma mulher, identificada apenas como Zarmina. Tudo acontece em rápida sucessão: a mulher, escondida atrás de uma burca azul, é transportada em uma caminhonete no meio do campo, é obrigada a descer e se ajoelhar em uma das grandes áreas, tenta uma fuga desesperada mas é imediatamente bloqueada e obrigada a sentar novamente, então os três tiros de um soldado talibã atrás dela concluem a cena dramática, com o corpo agora sem vida deixado deitado no gramado.

Zarmina tinha sido acusada de ter matado o marido, enquanto ele dormia, com um martelo de aço alguns anos antes, consequência de uma “briga de família”, segundo as crônicas da época. Toda a versão da história seria depois descoberta: os abusos do homem à sua esposa, a decisão de matá-lo para proteger seus filhos, os golpes infligidos por sua filha e a escolha de Zarmina de proteger a jovem negando que ela estivesse envolvida no caso.

Depoimentos da Associação Feminina Revolucionária do Afeganistão tornam essa execução pública ainda mais assustadora: provavelmente estavam presentes no estádio também os filhos de Zarmina, atormentados pela dor, e os parentes do falecido marido, que até pediram perdão pela mulher alguns minutos antes da execução. Era tarde demais: as autoridades responderam que já era impossível impedir a execução porque já tinha sido anunciada ao público, embora a lei islâmica permita o perdão do assassino pela família da vítima. O corpo de Zarmina foi posteriormente enterrado em uma tumba anônima fora de Cabul, rejeitada pelos parentes e anônima, como a morte dela.

Sua história, no entanto, continuou a ser contada e ainda hoje é o testemunho mais claro da função dos estádios sob o regime dos Talibãs: realizar espetaculares sentenças de morte, execuções, mutilações e apedrejamentos, de homens e mulheres na frente de milhares de pessoas antes dos jogos ou entre os dois tempos, em nome de uma lei de Talião considerada necessária para determinadas penas. É o horror que volta, um salto para trás de 20 anos em que os pequenos passos feitos para conquistar novas liberdades e direitos agora parecem pegadas na praia apagadas pelo mar, por algo muito maior e mais poderoso. Quão longes parecem agora as comemorações no estádio da torcida afegã no momento da conquista da primeira copa internacional da seleção nacional de futebol em 2013 (Copa da Federação de Futebol do Sul da Ásia); ou os dias de amistosos entre uma equipe nacional ainda não oficial do Afeganistão, liderada pelo ex-Southampton Lawrie McMenemy, e uma seleção da International Security Assistance Force (ISAF), sob o apito de um dos mais famosos árbitros ingleses da época, Peter Jones.

Uma partida, esta última, que foi disputada simbolicamente no Ghazi Stadium em Cabul, numa época em que o esquadrão anti-bomba era obrigado a entrar antes em campo para limpar um campo potencialmente cheio de explosivos. Era fevereiro de 2002, quase meio ano após o fim do regime dos Talibãs. Johnny Crook, capitão da ISAF, comentou o evento com a consciência de quem sabe o que realmente acontecia naquele lugar: “Estamos cientes de que seja a primeira vez que voltamos a jogar aqui ainda podiamos ver as marcas de bala, onde os condenados eram mortos. Ouvimos histórias terríveis sobre as execuções ocorridas entre os dois tempos. A partida de sexta-feira terá que ser normal, para que demostre a mudança de Cabul”.

A mudança, na realidade, não foi tão rápida e imediata. Mesmo depois de anos, quando se decidiu tirar o gramado coberto de sangue e substituí-lo por uma nova grama artificial, nem todos tinham vontade de voltar ao estádio. Alguém percebia as almas das vítimas ainda no meio do campo e continuava a ter diante dos olhos os horrores daquelas mortes. Hoje sabemos: havia milhares de pessoas nas arquibancadas todas as vezes, incluindo crianças, mas muitos iam lá sob coação ou até forçados a assistir a esta aplicação brutal da justiça por parte dos Talibãa. Frequentemente, contra pessoas condenadas com julgamentos sumários ou até inocentes.

Mohammad Isaq, famoso atacante afegão dos anos 90, que inicialmente fugiu do País com o começo da guerra civil e voltou no momento da ascensão dos Talibãs ao poder, também se lembra desses acontecimentos: ele havia sido procurado diretamente por um comandante, ansioso para trazer jogadores afegãos famosos para o plantel de Sabawoon, um dos doze times que nasceram sob o regime dos Talibãs. Mas a imagem que ainda fazia seu estômago revirar ele a contou à Radio Free Europe em 2012, relembrando seu primeiro treino com sua nova equipe: “Nós aquecemos e começamos a treinar um pouco os chutes. Quando levantei um barril que estava no meio do campo, encontrei seis mãos amputadas. Assim que as vi, fiquei chocado. Saí do treino e do estádio e voltei para casa. Fiquei doente por uma ou duas semanas”.

Nos anos que se seguiram ao fim do regime dos Talibãs, muito foi feito para mudar a história e permitir o acesso ao esporte para os homens, mas também para as mulheres que foram excluídas por um longo tempo. O próprio Estádio Ghazi possui espaços internos usados pela seleção nacional de boxe feminino, cujo destino agora é desconhecido com o advento do Emirado Islâmico. Há o medo de um retorno ao passado, aos anos sombrios que se esperava que tivessem acabado. O próprio futebol tornou-se uma oportunidade de revanche, conseguindo finalmente criar uma base sólida para o crescimento do movimento masculino e feminino: foi formada até uma liga para as últimas mencionadas, com mais de 1000 mulheres inscritas. Só em outubro passado, bem no Ghazi Stadium mesmo, assistimos às comemorações da vitória do campeonato da seleção feminina de Herat na final contra Cabul. O esporte agora parece ficar em segundo plano, potencialmente desaprovado pela leitura dos Talibãs do Alcorão. E volta o medo de que, de novo nos estádios, volte o sangue de tantas vítimas inocentes.