Além do talento: o multiculturalismo da Seleção da França

A Euro, como as outras competições internacionais, não consiste apenas em um expoente esportivo. É um expoente cultural que nos coloca diante de importantes questões sociais através do chamariz da bola e das quatro linhas. E a principal favorita para levantar o seu troféu talvez seja o grande exemplo disso.

A Seleção da França, além de uma excelente equipe e a atual campeã mundial, é formada em sua maioria por atletas de origem imigrante. São poucos os considerados “100% franceses” e a maior estrela do grupo, Kylian Mbappé, é filho de mãe argelina e pai camaronês. Os pais de Paul Pogba, meio-campista de repertório brilhante, são da Guiné – seus irmãos mais velhos, inclusive, defendem o time do país africano. Os pais de N’golo Kanté, o motorzinho incansável, foram de Mali pra Paris nos anos 80. Assim como os de Moussa Sissoko.

Presnel Kimpembe, que teve uma ótima performance na vitória sobre a Alemanha, é filho de pai congolês e mãe haitiana. O pai de Ousmane Dembélé, ponta habilidoso que entrou nos minutos finais, é natural de Mali – e sua mãe tem descendência senegalesa e mauritânia. Antoine Griezmann, um dos pilares do elenco, tem pai alemão e mãe portuguesa. Thomas Lemar nasceu em Guadalupe (de onde saíram os pais de Kingsley Coman) e Marcus Thuram na Itália – terra de onde vieram os avós de Olivier Giroud

Lucas Hernandez tem descendência espanhola – ele, seu irmão (Theo) e seu pai (Jean-François), aliás, jogaram em La Liga e se sentem confortáveis por lá. Há o caso de Wissam Ben Yedder, que tem pais tunisianos e poderia ter representado o país de acordo com as regras da FIFA. A Federação da Tunísia chegou a realizar cinco tentativas de levá-lo para a sua Seleção, mas o atacante do Monaco negou até a oportunidade de defendê-los na Copa de 2018, na Rússia.

Steve Mandanda, goleiro reserva, nasceu na República Democrática do Congo e se mudou para Évreux quando tinha dois anos. Outro arqueiro, Mike Maignan é natural da Guiana Francesa e sua mãe é haitiana. Os pais de Kurt Zouma, zagueiro, emigraram da República Centro-Africana. Companheiro de posição, Jules Koundé tem descendência de Benin. Corentin Tolisso, do Bayern de Munique, tem pai togolês.

Karim Benzema, atacante que está de volta depois de seis anos longe da Seleção, tem pai argelino e já foi alvo de várias polêmicas. Em 2006, ele falou o seguinte em entrevista para a RMC, sobre a possibilidade de jogar pela Argélia: “É o país dos meus pais, está no meu coração. Mas eu vou jogar pela França. Eu sempre estarei presente para o time da França. É mais pelo sentido esportivo, pois a Argélia é o meu país, meus pais vieram de lá. Sobre a França, é algo mais relacionado ao esporte. É isso.”

Ele inclusive relutava em cantar “La Marseillaise”, o hino nacional francês, antes das partidas. Sua história é complexa, digamos assim, e se trata de um dos personagens mais falados da Euro – e um dos melhores também. Agora, todos esses nomes citados vestem o uniforme azul e demonstram muita dedicação em seguir consolidando os Bleus como o esquadrão a ser batido em todo o planeta. Mas suas raízes nunca foram esquecidas e carregam uma representatividade considerável. Hora de entrar diretamente nos aspectos geopolíticos do assunto.

Voltamos um pouco no tempo, mais precisamente para o fim da Segunda Guerra Mundial. O cenário do país era de destruição e foram necessárias algumas medidas a fim de retomar um nível razoável de funcionamento. Um dos planos do governo foi o recrutamento de trabalhadores do sul e leste europeu e do norte da África. Nenhuma nação ‘levou’ mais imigrantes do que a França na década de 1960.

A economia começou a crescer de modo exponencial e novas ondas de imigração surgiram por conta de uma escassez de mão de obra que pegou muitos de surpresa. A maior parte das pessoas saía das colônias no oeste e da parte arábica da África, além do Caribe. Quase todas elas se estabeleciam em conjuntos habitacionais nas margens das grandes cidades. No meio disso, o futebol passava por uma crise e estava longe de engrenar. Entre 1960 e 74, a Seleção não se classificou para três Copas e 3 Euros. 

Diante de uma situação problemática, a Federação agiu de forma mais incisiva. O desenvolvimento de talentos foi potencializado por meio de um sistema de categorias de base construído com os clubes. Em 1988, o centro de treinamento de Clairefontaine foi inaugurado e rapidamente se tornou referência. E na Copa de 1998 os resultados começaram a aparecer. A nação estava em festa e o multiculturalismo, no geral, era razão pra celebração.

Aquela equipe recebeu a alcunha de ‘Black, Blanc, Beur (preto, branco, árabe)’, referenciando as etnias e descendências variadas presentes na convocação do técnico Aimé Jacquet. Mas as repercussões negativas sempre existem, infelizmente, e nem todos exaltaram os feitos. Um político nacionalista, Jean-Marie Le Pen, considerou ‘artificial’ o fato de “trazerem esses jogadores de fora e batizá-los como a Seleção da França”. Não sabemos se ele imaginava que aquilo seria apenas o início de algo que se tornou ainda mais grandioso e perdura até hoje.

A diversidade apenas aumentou e o que assistimos dentro das quatro linhas não é apenas uma enorme reunião de talento, mas também a realização daqueles que normalmente seriam rejeitados por parte da sociedade. Seguimos esse caminho até a capital, Paris. Cerca de 40% dos imigrantes residem na metrópole e nos seus arredores, a maioria especificamente nos Banlieues – ou, traduzindo, subúrbios. Essas áreas costumam apresentar altos níveis de pobreza, crime e desemprego, estigmatizando seres humanos desde o início da vida. 

Acontece que as crianças ali são logo acostumadas a brincar com a bola nos pés. Clubes dessas regiões são tratados como projetos sociais, fundos municipais oferecem apoio financeiro e vários mudam de vida através do esporte – e olheiros de diversos lugares os observam intensamente. A maioria não vai levantar um troféu Jules Rimet como fez Kylian Mbappé, menino criado nas ruas de Bondy. Mas referências como o craque do Paris Saint-Germain servem como um exemplo de que é possível crescer em meio a dificuldades.

A França é a França. Mas a França é também um pouquinho de várias partes do mundo. E mostra que o multiculturalismo veio pra ficar.