Recentemente a UEFA divulgou um relatório chamado Football Landscape, que traz uma visão geral sobre o futebol europeu sob diversas óticas, que passam por finanças, competições, controle acionário, entre outras. Na edição de 2021 a entidade trouxe um panorama dos efeitos da pandemia sobre o futebol local.
O cenário apresentado foi alarmante, ainda que não fosse muito difícil imaginá-lo. Analisando os efeitos de duas temporadas – 2019/20 e 2020/21 – e sem todos os dados à disposição, a confederação europeia estimou que houve redução de receitas causada pela pandemia foi entre € 7,2 bi e € 8,1 bi. Os maiores impactos vieram no chamado Matchday (as receitas com bilheteria e consumo no dia dos jogos), que sofreram queda de cerca de € 4bi. Ou seja, metade do efeito total.
As principais ligas sofreram impactos diferentes, muito em função da força dos contratos e dos impactos nas economias locais. A Premier League perdeu perto de 15% de receitas. Bundesliga e LaLiga perderam algo como 20%, a Serie A perdeu cerca de 25% e a mais impactada foi a Ligue1, que perdeu cerca de 35% das receitas, que além da pandemia ainda teve efeitos da quebra de contrato de direitos de transmissão com a empresa Mediapro.
Os efeitos são claros: problemas para pagar as contas, aumento de dívida e redução de investimentos. Para se ter uma ideia, a janela de transferência de verão – Agosto/20 – movimentou cerca de € 4bi, contra € 5,7 bi de 2017, € 5,2 bi de 2018 e € 6,5 bi de 2019. O valor de 2020 foi equivalente ao movimentado em 2015.
Não há dados sobre endividamento, mas certamente que a grande maioria dos clubes foi buscar linhas de empréstimos para fechar suas contas, além de assumir dívidas com atletas e prorrogar pagamentos a outros clubes.
Não foi à toa que o movimento da Superliga veio há pouco. Já ouvimos falar sobre a situação de risco do Barcelona, as dificuldades de pagamento que a Inter Milano apresentou, buscando sócios para aliviar a pressão de caixa, mas que acabou se transformando num empréstimo com garantia das ações do clube.
Obviamente que isso não afetou apenas os grandes. O presidente do Cagliari, Tommaso Giulini, declarou recentemente ao jornal La Repubblica que o futebol italiano está à beira de um colapso. E o Cagliari é um dos clubes mais organizados do país, com projeto de novo estádio e tudo mais. Dívidas elevadas, falta de clareza sobre o retorno do público aos estádios, falta de ajuda do governo no refinanciamento das dívidas – diferente do que foi feito na Inglaterra, onde o governo ofereceu linhas de crédito às empresas e que servia também a clubes de futebol – e chegando até a criticar o poder dos intermediários e agentes no futebol.
Mas praticamente nada do que foi escrito aqui é realmente novidade, certo? Onde quero chegar com essas informações de certa forma requentadas? Na confusa realidade que se transformou o futebol europeu.
Vamos a alguns casos:
– Antonio Conte, ex-treinador da Inter Milano, rescindiu contrato com o clube milanês em comum acordo entre as partes. Ganhava algo como € 13 milhões anuais líquidos (que aos cofres do clube custava € 25 milhões com os impostos), mas se incomodou com o fato do clube propor reduções salariais permanentes aos atletas, além de indicar a necessidade de vender algumas de suas estrelas. Por isso, pediu para sair.
– O mesmo Conte negociava com o Tottenham para ser o novo treinador e pediu incríveis € 17,5 milhões anuais líquidos e um investimento mínimo de € 116 milhões para reforçar o elenco, conforme anunciou o The Sun.
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— Inter 🏆🇮🇹 (@Inter) May 24, 2021
– Maurizio Sarri chegou à Lazio pedindo 4 contrataçõesrelevantes, enquanto José Mourinho assumiu a Roma pedindo uma grande reforma de elenco.
– O Milan não conseguiu renovar o contrato do ex-goleiro Donnarumma, que recebia € 6 milhões anuais, e incluía na conta o contrato do irmão, terceiro reserva do gol. O atleta pediu € 12 milhões anuais (mais uma gorda comissão para o agente, Mino Raiola), o clube ofereceu € 8 milhões e não houve acordo. “Chegamos ao limite”, disse Maldini, o Diretor Esportivo do clube.
– E quem deve contratar Donnarumma? O PSG, que estaria disposto a bancar os € 60 milhões por 5 anos.
– Mesmo Milan que tenta contratar os emprestados Tomori (Chelsea) e Tonalli (Brescia), e negocia descontos nos valores, de forma a caberem na conta do clube, ainda que engordada pelo retorno à Champions Legue. O clube hoje apresenta dívidas comportadas após mais de € 500 milhões de aportes feitos pelo proprietário, o fundo americano Elliott. E não vai gastar além do que pode.
– Enquanto isso, Real Madrid fala em contratar Mbappé, trouxe Carlo Ancelotti, pensa em reformulação do elenco, e o Barcelona contratou Aguero, tem sonhos com Lautaro Martinez e Haaland, assim como o Real Madrid.
– Harry Kane deve deixar o Tottenham e pode aparecer no Manchester City, que para abrir espaço no elenco, dizem, poderia negociar Sterling e Gabriel Jesus. O brasileiro pode aparecer na Juventus, especialmente se CR7 deixar o clube e rumar a um lugar disposto a pagar seus módicos salários.
Mas a pandemia não deixou os clubes em dificuldades? Alguns não foram atrás da grana rápida da Superliga? E os cortes de salários? E a ausência de receitas de matchday?
Esqueça tudo isso. No ecossistema do futebol a crise é sempre passageira. Sempre haverá alguém disposto a injetar dinheiro, contratar, reforçar, buscar a glória que ficou para trás. Afinal, não é possível passar duas ou três temporadas sem vencer. E os fãs? E a base geradora de “likes” nas redes sociais?
Pois é. O futebol está passando por transformações, a redução de receitas é real, especialmente as relacionadas aos direitos de transmissão, fruto da dificuldade dos operadores de rentabilizar investimentos tão relevantes, mas também da deterioração do cenário pela pandemia.
Entretanto, não se engane, pois o futebol não vai mudar seu jeito de agir. Alguns clubes sabem da necessidade de se ajustarem e operarem dentro da realidade, a UEFA e as federações locais seguirão cada vez mais restritivas em relação aos gastos e dívidas, mas não seja ingênuo: há muito dinheiro no futebol, e outro tanto querendo participar do jogo. Tão logo a economia se recupere, o público volte aos estádios, o consumo atinja níveis razoáveis, tudo voltará ao normal.
Pelo menos para quem tinha um normal antes da pandemia.