Uma crise interminável: o que aconteceu com o tradicional Schalke 04?

Há muitos anos dominado pelo Bayern de Munique, o futebol alemão sempre teve seus tradicionais clubes brigando pelo topo na Bundesliga (criada em 1960). Se na história recente os bávaros estão com um domínio absoluto, um nome que nos últimos anos figurava na lista para a Liga dos Campeões é o do Schalke 04. Entretanto, do final de 2020 para 2021, o clube entrou na maior crise de toda sua história, com déficits milionários, saída de grandes diretores, treinadores, jogadores e quase o maior recorde sem vitórias da história da Bundesliga. 

Mas como os Azuis Reais chegaram até esse patamar? O que fez com que o clube com uma das maiores torcidas da Alemanha entrasse em um poço que parece sem fundo?  Tentamos explicar o que levou um dos maiores clubes do futebol europeu a atingir esse decadente momento.

SUCESSO NOS ÚLTIMOS ANOS?

A verdade seja dita, mesmo figurando entre os melhores temporada a temporada, o Schalke 04 vive um jejum de 63 anos sem conquistar o Campeonato Alemão. Desde que é chamado de Bundesliga, nunca foi campeão. Mesmo assim, seguiu sendo uma das grandes potências do futebol alemão. Dizem, à boca pequena, que até Adolf Hitler era torcedor do clube, fato nunca comprovado. Contudo, se avaliar friamente, foi no período mais duro do nazismo que a equipe de Gelsenkirchen conquistou seis dos seus sete títulos nacionais.

Mesmo com esse jejum, nos períodos seguintes, o Schalke esteve em oito Liga dos Campeões, só no século XXI, chegando até as semifinais na temporada 2010-2011, quando contavam com o ídolo espanhol Raúl González no elenco – o atacante foi o responsável pelo gol que eliminou a atual campeã Inter de Milão nas quartas de finais.

A mesma Internazionale também já sofreu nas mãos dos Azuis Reais. Na temporada 1996/97, mesmo com Ronaldo Fenômeno em seu elenco, o Schalke faturou a Copa da Uefa, seu único título internacional, mostrando que estava de volta para figurar entre os melhores da Europa e Alemanha.

O período de maior baixa da equipe aconteceu em sua primeira grande crise, na década de 80, quando foi rebaixado em três ocasiões, retornando na temporada 1990/91 e ficando entre os melhores até a fatídica crise atual que parece não ter fim.

PROBLEMAS GRAVES FINANCEIROS

Para entender como o Schalke se afundou de vez, é preciso entender as dívidas adquiridas e como foram nos últimos anos. E foi o chamado “Escândalo das Carnes”, que deu o impulso para o clube se entregar de vez e passar pelo período mais nebuloso de sua tradicional história. Com a pandemia da Covid-19, o presidente do conselho administrativo do clube, Clemens Tönnies,  viu seu nome envolvido em uma série de protestos. Isto porque, a Tönnies Group, localizada em Rheda-Wiedenbrück, no oeste do país,  responsável por mais de 20% de toda a carne da Alemanha, teve um grande surto com mais de 1500 funcionários contaminados, gerando uma série de protestos por todos os lados do país, além da enfurecida torcida dos Azuis Reais.

Os adeptos pediram a saída insistente do mandatário do clube no qual já estava há 26 anos e onde viu o Schalke reviver seus grandes momentos da década de 30. Tönnies, inclusive, declarou diversas vezes que só sairia com o Schalke de volta ao topo da Bundesliga, superando o Bayern e seu maior rival, o Borússia Dortmund. Mas não foi assim.

O ex-presidente do conselho administrativo soltou o verbo e  fez declarações racistas ao discutir medidas para combater os efeitos das mudanças climáticas em países da África. A sua ideia foi financiar a construção de 20 usinas elétricas no continente por ano como solução para os africanos “não derrubar mais árvores e ficar fazendo filhos no escuro por aí”. 

Suas declarações deixaram os torcedores enfurecidos, unidos a jogadores com ascendência africana no elenco. Sendo assim, ao final da temporada 2019/20, em plena pandemia, o clube do Ruhr acumulou 16 partidas sem vencer, terminando na 12ª colocação e consequentemente vendo Clemens Tönnies entregar o cargo, tirar o investimento e afundar o clube em mais dívidas.

AUMENTO GRADATIVO DAS DÍVIDAS

Apesar do bilionário ajudar nas contas do clube, o Schalke já não vivia o seu melhor momento financeiro, que piorou ainda mais sem o dinheiro dos frigoríficos. Quando Tönnies deixou os Azuis Reais, a dívida já estava próxima de 200 milhões de euros (cerca de R$ 1 bilhão). Vivendo crise na empresa e com a torcida, obviamente Tönnies não ajudou mais o Schalke 04. 

Desta maneira, sem solução a curto prazo, a diretoria resolveu tomar medidas preventivas, sabendo do obscuro futuro que o clube enxergaria. Ideia inicial, era manter mais uma vez clube do Ruhr na parte de cima da tabela da Bundesliga, conquistando vaga em algum torneio europeu e assim aumentando um pouco sua deficitária receita.

No meio da pandemia, entretanto, a diretoria aplicou uma suspensão de salários e prêmios de jogadores para evitar uma situação de insolvência, e para conseguir pagar os mais de 600 funcionários que trabalham no clube.

De uma forma inesperada, veio o golpe final. Os jogadores procuraram a diretoria para saber qual era a real situação financeira do clube. Os torcedores pediram reembolso pelos ingressos não utilizados, já que os jogos seriam sem público e a situação desandou de forma caótica. Para efeito de comparação, o clube demitiu todos os funcionários menores, como motoristas de serviço de transporte geral, uma revolta ainda maior em todos os lados.

Mesmo com a garantia de um auxílio de 40 milhões de euros (cerca de R$ 258 milhões, na cotação atual)  do estado da Renânia, do Norte-Vestfália, o clube não conseguiu se manter. As dívidas aumentaram em mais 50 milhões e o clube se viu obrigado a não honrar com seus compromissos financeiros.

ELENCO RACHADO E TROCA DE TÉCNICOS

Os problemas extra-campo de jogadores também começaram a surgir na última temporada. Destaques da equipe como Nabil Bentaleb e Amine Harit foram suspensos do elenco principal. No mesmo dia, o diretor técnico Michael Reschke também anunciou sua saída do clube. Ainda no extracampo,  Vedad Ibisevic, que chegou a afirmar que jogaria de graça pelo Schalke, confirmou que deixaria os Azuis Reais ao final da temporada. Isto logo após se desentender com o auxiliar-técnico, o brasileiro Naldo. Na época, todos os envolvidos disseram que o episódio não foi o causador da saída de Ibisevic.

Além das crises com jogadores, o clube teve no comando técnico o norte-americano David Wagner, o alemão Manuel Baum, o suiço Christian Gross, o holandês Huub Stevens e foi rebaixado com o grego Dimitrios Gramozis, que venceu duas das três vitórias que a equipe teve em toda a Bundesliga. Foram cinco treinadores de nacionalidades diferentes para tentar impedir o vexame sem precedentes.

POR POUCO NÃO BATE RECORDE NEGATIVO

E para quem achou que o rebaixamento já era o ápice negativo da equipe do Vale do Ruhr, por muito pouco esse Schalke 04 não se torna a pior equipe da história de toda Bundesliga. A equipe atingiu a marca de 30 jogos sem vencer na primeira divisão, ficando um atrás do recordista, o Tasmania Berlin, da temporada 1965/66, que acumulou 31 partidas consecutivas sem uma vitória sequer. Foram ao todo três empates e 28 derrotas. 

Porém, quando atingiu a marca de 30 jogos, o Schalke enfim conseguiu vencer a primeira e com autoridade. Foi a primeira das três vitórias em toda a temporada 20/21 da Bundesliga. A equipe fez 4 a 0 no Hoffenheim, em janeiro, encerrando o jejum de quase um ano sem um triunfo na competição. A última vitória – antes dessa – havia sido em 17 de janeiro de 2020, quando fez 2 a 0 no Borussia Monchengladbach. E no período inteiro foram apenas três triunfos pela Copa da Alemanha.

RIVALIDADE QUASE ESGOTADA

Quem acompanha o futebol alemão sabe que uma das maiores rivalidades do país – senão a maior – é o Clássico do Vale do Ruhr (a distância entre as cidades é de apenas 35km), que é protagonizado pelo Schalke e o Borussia Dortmund. Considerado por muitos “A Mãe de todos os Derbis”, o confronto sempre foi marcado por muito equilíbrio. Até essa crise sem precedentes, os clubes somavam 157 clássicos com 60 vitórias dos Azuis Reais, 55 do Dortmund e 42 empates. Na última temporada, o Borussia venceu os dois jogos por 4 a 0 e 3 a 0. Mesmo assim, o Schalke segue em ligeira vantagem, mas com a tendência de perder essa liderança.

Além da proximidade, a rivalidade dos clubes tem cunho religioso para muitos. Isto porque o Schalke é um time intimamente ligado aos trabalhadores mineiros da região do Ruhr e foi fundado por operários protestante em 1904. Já o Dortmund foi fundado por católicos.